terça-feira, 18 de outubro de 2011

Aspectos Histórico-Culturais e o Início do Combate

Não existem datas exatas que comprovem o hábito de ingerir ou inalar substâncias entorpecentes. Em quase todas as culturas e povos encontramos referências ao uso esporádico de drogas, particularmente durante as cerimônias religiosas. Nas cerimônias religiosas, o consumo só era permitido ao xamã, que tinha a posse, o direito de uso e sua obtenção. Acredita-se que ele usava a droga para um estado de dissolução que melhor permitisse “invocar espíritos”.
Em outras culturas, o uso das drogas está ligado a cerimônias grupais, que atuava como um facilitador onde os integrantes do grupo se tornavam mais alegres e sociáveis.
O uso de drogas sempre fez parte do cotidiano das sociedades. Richard Bucher, psicanalista, doutor em Psicologia pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, enfatiza que:

 “em todas as sociedades sempre existiram drogas, utilizadas com fins religiosos ou culturais, curativos, relaxantes ou simplesmente prazerosos. Graças às suas propriedades farmacológicas, certas substâncias naturais propiciam modificações das sensações do humor e das percepções. Na verdade, o homem desde sempre tenta modificar suas percepções e sensações, bem como a relação consigo mesmo e com seus meios naturais e sociais. Recorrer a drogas psicoativas representa uma das inúmeras maneiras de atingir este objetivo, presente na história de todos os povos, no mundo inteiro. Antigamente, tais usos eram determinados pelos costumes e hábitos sociais, e ajudaram a integrar pessoas na comunidade, através de cerimônias coletivas, rituais e festas. Nessas circunstâncias consumir drogas não representava perigo para a comunidade, pois estava sob o seu controle. Posteriormente, as drogas passaram a ter outra conotação, devido ao desregulamento destes costumes, em conseqüências das grandes mudanças sociais e econômicas”

O abundante e indevido uso de estupefacientes passou a preocupar todas as nações civilizadas, tendo como corolário às tentativas de controle e repressão em âmbito polinacional.
Pode-se afirmar com exatidão, que esse processo ganhou força e se institucionalizou primeiramente nos EUA. O moralismo norte-americano, portanto, fez sediar um intenso debate público sobre as drogas, como, também, a instituir um aparelho burocrático exclusivo para o seu controle. A origem desta regulamentação está na pressão que os EUA exerceram sobre todos os demais países do mundo a controlarem com rigor a produção de estupefacientes, naquele momento principalmente a cocaína e a heroína. Tal esforço se deu não apenas para exportar um modo de vida considerado ideal ou por interesses econômicos e políticos, ambos sem dúvida importantes, mas sobretudo para legitimar uma política rigorosa de controle interno do uso de drogas.
Podemos tomar como referência a primeira guerra do ópio, em 1839, como fonte do primeiro contorcionismo regulamentador do comércio de drogas no mundo. Nesta época, início do século XX, drogas hoje proibidas, como a cocaína e a heroína, faziam parte de um lucrativo mercado legal que envolvia interesses de potências do período, suas industrias farmacêuticas e suas estratégias geopolíticas no globo. Estados europeus como Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e Portugal tinham como um dos principais itens de suas políticas coloniais a produção de matéria-prima para a industrialização de psicoativos largamente comercializados, principalmente o ópio e seus derivados. A atenção ao livre-comércio de entorpecentes motivou dois confrontos entre tais potências ocidentais e o governo imperial chinês, que pretendia proibir o ópio no país. Tivemos ali uma guerra em favor do comércio do ópio, ou seja, em favor dos negociantes ingleses que contavam com o apoio norte-americano, e levavam o ópio da Índia para a China, como etapa de um circuito comercial tríplice. O conflito opunha de um lado a decisão do imperador chinês de interromper e proibir o comércio e o uso do ópio, e de outro, como bem afirmou Jonathan D. Spence, “os enormes investimentos ingleses na produção e distribuição da droga e o papel crucial representado pelos rendimentos do ópio na estratégia da balança de pagamentos internacional da Inglaterra”.
Sem dúvida, esta guerra trouxe a marca da política que viabilizou o combate às drogas. A condução das operações militares, também, revelou este estigma, objetivando uma asfixia em suprimentos externos e um gradual avanço de posições (favorecido pelo fosso tecnológico) que conduza à rendição e ao acordo para as “reparações”; não era uma campanha para destituir o governo nem destruir a nação chinesa, o escopo era a sobrevivência do Estado-devedor e dos consumidores de ópio que haviam criado aquele mercado aparentemente infinito.
Percebe-se que esta foi uma guerra em favor do tráfico de drogas, como já dito, onde a política criminal adotada elegeu a própria guerra como método.
Nota-se que Estados hoje proibicionistas é que patrocinaram duas campanhas, ambas conhecidas guerra do ópio, para em nome da liberdade comercial, impor a legalização dos opiáceos aos chineses. Em defesa dos chineses algumas décadas depois, vieram os americanos, nos primeiros anos do século XX, ensaiavam passos mais ousados no cenário internacional, buscando ocupar destaque no jogo de poder, até então, protagonizado por europeus. Os EUA encamparam os anseios proibicionistas do governo chinês e pressionaram os Estados ocidentais com interesses no ópio e na região para uma conferência que discutisse limites para o mercado do psicoativo. Tal debate resultou na Conferência de Shangai, em 1909, que reuniu 13 países para tratar do problema do ópio indiano infiltrado na China. Esta conferência internacional, porém, não produziu resultados prático. Mas foi o primeiro documento internacional a registrar determinações no sentido do controle de um mercado, até então, livre.
Posteriormente, em dezembro de 1911, reuniu-se em Haia a primeira Conferência Internacional do Ópio, da qual resultou, em 1912, convenção internacional prejudicada em sua execução pela I Grande Guerra, tendo entrado em vigor apenas em 1921. Com a criação da Sociedade das Nações, sua Convenção constitutiva reconheceu a atribuição de elaboração de acordos sobre o tráfico de ópio e outras drogas nocivas, tendo sido criada em fevereiro de 1921 a “Comissão Consultiva do ópio e outras drogas nocivas”. Ainda vinculadas à sociedade das Nações, mais cinco conferências foram realizadas: a de 1924, da qual surgiu, em 1925, o acordo de Genebra, tornou realidade os dispositivos da Conferência de Haia de 1912, tendo sido revisto na Conferência de Bangkok em 1931; ainda em 1924, em novembro, nova Conferência realizou-se em Genebra, à qual compareceram, além dos membros da Sociedade das Nações, os Estados Unidos e a Alemanha, tendo sido, nesta Conferência, ampliado o conceito de substância entorpecente e instituído sistema de controle do tráfico internacional por meio de certificados de importação e autorização de exportação; em 1931 e 1936, em Genebra, duas novas conferências foram realizadas, ficando estabelecida a obrigação de os Estados participantes tomarem as providências para proibirem, no âmbito nacional, a disseminação do vício.
Todas essas tentativas de repressão organizada tiveram resultados duvidosos, mormente pela falta de entendimento internacional, quando os interesses econômicos dos países produtores de entorpecentes se sobrepunham aos interesses da humanidade.
O século XX havia sido o período dos maiores massacres e das mais amplas violências perpetradas pelos homens em guerra, assim como fora, também, palco para eclosão de conflitos generalizados e locais, que se entrecruzaram de formas distintas consagrando, a partir de 1945, a guerra civil como face concreta dos embates mundiais.
A II Guerra Mundial, como toda convulsão de âmbito internacional, pela desorganização ou perturbação social que causou, trouxe aumento do índice do consumo de drogas, preocupando desde logo a ONU, assim que criada. Sob sua convocação, em 1946, foi assinado protocolo, atualizando acordos anteriores; em 1948, em Paris e, em 1953, em Nova York, firmando-se outros protocolos, sendo que este último se restringiu a produção de opiáceos na fonte, permitindo sua destinação apenas para uso médico. Finalmente, 1961, a 30 de março, firmou-se a Convenção Única de Nova York sobre Entorpecentes, que anulou as anteriores, salvo a de 1936. A Convenção única da ONU de 1961 pode ser identificada como o tratado-síntese da seqüência de conferências internacionais realizadas no âmbito da Liga das Nações, até os anos 1930 e, depois da Segunda Grande Guerra, documentos estes que expressaram unanimidade na ênfase proibicionista.
Em 21 de fevereiro de 1971, em Viena, foi firmada a Convenção sobre substâncias Psicotrópicas, visando atualizar a fiscalização e abranger os entorpecentes de repressão recente, como, por exemplo, as anfetaminas e o LSD.
Em 26 de março de 1972, em Genebra, firmou-se protocolo que modifica e aperfeiçoa a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961. Este protocolo altera a composição e as funções do Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes, amplia as informações que devem ser fornecidas para o controle da produção de entorpecentes naturais e sintéticos e salienta a necessidade de tratamento que deve ser fornecida ao toxicômano.
Em 20 de dezembro de 1988 foi concluída em Viena nova Convenção, que entrou em vigor internacional em 11 de novembro de 1990. Esta Convenção, visando fortalecer os meios jurídicos efetivos de combate ao tráfico ilícito, complementou as Convenções de 1961 e 1972, acrescentando, entre outras coisas, o éter etílico e a acetona no rol das substâncias controladas.
Esta intensa repressão, que levaram os EUA a declarar uma “guerra contra o tráfico” e a destinar cifras astronômicas do orçamento em equipamentos de vigilância, armas e veículos especialmente preparados, treinamento de pessoal, entre outros, é explicável, também, pela circunstância de que o tráfico de drogas ilícitas é um mercado que movimenta muitos bilhões de dólares que saem, retornam e saem novamente daquele país com a mesma desenvoltura, quantia esta que os EUA abocanham apenas uma fração ínfima, na forma de desapropriação de imóveis e ativos de contas bancárias de propriedade dos traficantes.
Paralelamente, os EUA implementaram o discurso-médico sanitário para o caso do consumidor. Não poderia ser diferente, face aos movimentos contestatórios as drogas passaram a ser utilizadas como instrumento de protesto contra o imperialismo, base da política norte-americana, contra a síndrome armamentista e, fundamentalmente nos Estados Unidos da América do Norte, contra a Guerra do Vietnã. O uso de drogas ilícitas passa a ter, neste preciso momento histórico, sentido libertatório, adquirindo caráter de manifestação política. Contrariamente ao que vinha acontecendo nas décadas anteriores, o consumo de drogas sai dos guetos e invade a classe média. O pânico criado por este fato solidificará campanhas de “Lei e Ordem”, que orientaram a produção legislativa norte-americana de combate às drogas e, conseqüentemente, a transnacionalização do controle de entorpecentes.
Este contexto impedia uma criminalização generalizada da população, que tem uma significação econômica, e que, por causa disto, convém não encarcerar, então, para o consumidor branco/dependente/doente vige o discurso médico-sanitário, que sugere tratamento-justiça terapêutica ao invés do cárcere.

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